Demorei, mas aí está o meu post!
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Acho que estou louca. Tenho outra voz dentro de mim.
Não é uma voz que aconselha ou critica. Ao contrário, é apenas dada a conversar. Fala das bobagens mais variadas.
Eu nunca dei muita atenção. Quando vem, como quem não quer nada, a me falar do tempo para puxar assunto, eu desconverso. Finjo que não é comigo.
Ela tenta então discutir sobre a vida dos outros, conhecidos.
- Viu fulano?! Está com uma cara estranha, de quem aprontou alguma.
Eu até entrava na conversa dela em um primeiro momento, mas assim que percebia que era a tal voz, eu me calava. Não é correto falar com vozes dentro da gente. Cada pessoa que conheço tem uma voz, apenas uma. E eu sou uma pessoa, apenas uma. Portanto não posso ter outra voz dentro de mim. E se essa voz tentar um dia assumir o meu lugar? Este é um risco que não quero correr.
Mas não se engane, esta voz não é tão amigável quanto parece em um primeiro momento. Ela tenta me enganar constantemente. Muda o seu tom. Imita descaradamente sons que ouço durante o dia. Teve uma vez que até tentou falar em outra língua comigo. Eu não falo outra língua, nunca pude estudar esse tipo de coisa. Mas também, para que? Para falar com vozes estrangeiras na minha cabeça? Não, obrigada!
Eu nem imaginaria que esta vozinha iria me oferecer perigo. Deixei ela de lado, ali abandonada. Mas ela, em um plano vil começou a arquitetar maneiras sórdidas de me influenciar.
Eu não gosto de corvos, mas também não os detesto. Mas a voz sim. Ela não os suporta, nunca suportou. A primeira vez que ouviu já se pôs a reclamar:
- Som horroroso! Pressagia o mal.
Como se ela fosse grande coisa.
Tenho que concordar que são uns animaizinhos estranhos. Olhos grandes. Como se desvendassem meus pensamentos mais obscuros. Mas aí a pressagiar o mal é pura besteira.
Eu segui com minha vida normal, mas sempre que ouvia um corvo, a voz punha-se a gritar. O grande problema era que sempre tinha algum na esquina da minha casa.
Dias atrás, não sei se por cansaço ou pura falta de atenção, a voz foi mais forte que eu, venceu-me por instantes. Rosnou alto:
- Morra seu animal nojento!
Tapei minha boca mas o corvo olhava-me desconfiado. Pouco liguei, nunca me importei com pássaros me encarando. Fui para a casa com seus olhos ainda a me perseguir.
Mal sabia eu que era apenas o início. No dia seguinte eram 2 corvos. No outro, tinham 5. Em uma semana já era um bando.
Sempre me encaravam aonde quer que eu fosse. Cada movimento meu. Penduravam-se na minha janela enquanto eu tomava banho. Voavam disfarçadamente atrás de mim enquanto eu caminhava na rua. Espionavam-me a todo instante. Como se dissessem: eu sei quem você é, sei o que faz, sei aonde vai.
A voz tornou-se insuportável. Ficava irritava e ordenava que eu desse um jeito naquelas criaturinhas abomináveis.
- Mate-os! Mate-os todos!
Enlouquecia meus pensamentos. Deturpava a minha mente. E fazia tudo para me provocar.
Imitava sons de corvos enquanto eu dormia. Soprava provocações quando eu passava por eles. Incitava que eu os liquidasse de uma vez por todas. E até dava sugestões de como matar os pobres animais.
- Dê-lhes veneno! Atire neles! Destrua-os!
Eu não poderia matar aqueles seres inocentes por conta de uma voz. Mas também não poderia suportar aqueles bichos a assombrar a minha vida. Precisava eliminar algum deles. Ou os corvos ou a voz.
Eliminar a voz não seria uma tarefa fácil. Visto que estava dentro de mim, eu teria que entrar em mim mesma para encontrá-la. E como poderia entrar dentro de mim? Não posso revirar os olhos para enxergar dentro do meu corpo. Ou abrir a cabeça e retirar os pensamentos com as mãos, um a um, e separar o que não quero mais do que ainda me serve.
Eu poderia talvez pedir ajuda de alguém. Dizer-lhe:
- Não sou louca, não me entenda mal! Apenas ouço vozes que me dizem para matar coisas. Algo perfeitamente normal, creio eu!
De jeito nenhum. O que diriam de mim? O que as pessoas que conheço pensariam? Todos teriam medo das minhas vozes conversadeiras. Ninguém acreditaria que era apenas uma voz. As pessoas são assim, não costumam acreditar naqueles que são diferentes.
Sobram-me os corvos. Eu poderia matá-los de uma vez! Apenas isso! Afinal aves não vivem mesmo por muito tempo.
Kenya Sato
